Lírico

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Greenland
Toda eu sou alma. Todo eu sou frio, branca como a neve. Toda eu sou sonho, céu, nuvem. Toda eu sou girassol. Toda eu serei tua, se assim o entenderes.

2 de junho de 2011

Miles away



Oh, esconde-te! Eles querem prender-te, eles querem que sejas o tesouro menos valioso do mundo! Morre! Sai daqui e deixa este lugar por tempo indefinido. Para sempre? Não. O sempre não existe. Somos limitados. Não podemos pensar em “eternamentes”.
Leonardo magicava sobre isto: pensava sobre o quanto a vida lhe pesava nos ombros. É triste! Nunca imaginei alguém tão descabido de motivação ou razão de ser. Oh, o nunca também não existe… Não caminhes por esse lado: vem antes para junto de mim! Não te dirijas a essa rua, vem, oh vem… deixa-me olhar-te nos olhos, condensar-te essa tristeza num leve sopro e manda-la para bem longe de ti, para que não te atormente mais. Oh vem, quero que venhas, vindo despertando, ficando morrendo de leve nos meus braços… mostrar-te-ei a felicidade que corre em todas as veias do meu corpo quando estás por perto. Oh, olha o relógio, ele não pára, tu te demoras, eu não aguento mais, sai daqui, fá-lo, rapidamente, sem pensar, simplesmente faz o que deves fazer.
A consciência pode ser a raiz de todos os males. Mas como todos os males podem ser cortados de raiz, também Leonardo deveria arrancar a sua insistente percepção da vida e libertá-la no rio que agora vê correr mesmo por baixo dos seus olhos. A altitude é grande, a queda será ainda maior. Imagina o seu corpo em pleno voo, transformado em pássaro bravio e tão selvagem como qualquer um outro que nasce como tal. Sempre que um pé se atrevia à menor movimentação na direcção do fundo, o pensamento reagia, num acto involuntário de epilepsia, recuando, formando a esfera protectora da sanidade que não faltava mas se encontrava em decréscimo.
As últimas semanas passadas no quarto não ajudaram em qualquer uma das decisões que podiam ter sido tomadas. Clarissa era especial de mais para que algum dos seres que conhecia a conseguissem compreender. No fundo, ela apenas precisava de ajudar alguém, de fazer transparecer a ideia de que era útil, de que afinal tinha nascido, vivido e sido importante para o mais insignificante átomo neste universo de imensos lugares mas nenhum refugio. Oh, como és fútil e desvantajosa, olha como o Sol não brilha quando acordas, as nuvens se escondem quando passas pelas ruas e abraças o céu… oh, afinal és só tu, pensava que era outro alguém que quisesse falar comigo, és só tu Clarissa, e eu sou a tua consciência e não permitirei, jamais, que te entendas contigo própria, isso é missão de alguém sublime, não tu, tu não, não chores Clarissa, não chores, não vale a pena, o dia não nasce para ti e a noite não é feita para que te deites e descanses as ideias que não surgiram; não sonhes Clarissa, não sonhes, não vale a pena, sonhar não é para ti, é para alguém capaz de fazer sorrir uma flor, é para alguém que não tu!
Leonardo e Clarissa não se conheciam, nem sabiam que alguém que os complementasse tanto pudesse existir. Ela decidiu que deveria sair, guardar um pouco de ar fresco caso outro período de hibernação lhe ocorresse. Ele especava naquela imensidão de vazio, naquele sonho de voar e ficar suspenso pelos próprios pés, de se transformar em mar, um dia que o rio o levasse até lá, fundir-se com o sal, fossilizar, e depois de milhares e milhares de anos em condições óptimas de fossilização, alguém encontrar essa mesma pedra, dizendo, inconscientemente, sem sentir nada: “Aqui jaz Leonardo Lourenço, filho do sonho e da vontade de se deixar ir, condenado ao terrível desespero da sua consciência. Aqui se encontra, aqui permanecerá!”.
A rua era larga. Curioso: não passara ninguém. Apenas Clarissa atravessava o passeio olhando para o rio que passava lá em baixo, violento. Era Outono, tinha chovido a semana toda, havia água em abundância. Mas hoje não, hoje estava Sol, hoje as nuvens deram ar da sua graça e mostraram se receptivas aos pedidos daquela pobre rapariga. Num instante, quase tão instantâneo como um bater de asas de uma libelinha, quase tão espontâneo como o começo de um amor, Clarissa viu Leonardo, diante de si, olhando o fundo. Oh, como ele é belo, como te deixou sem ideias a alma, como te tranquilizou sem nada ter ocorrido, oh, olha Clarissa, como ele é a melhor pessoa que jamais irás conhecer, nunca ninguém te irá fazer tão feliz, mais nenhum desgraçado te irá compreender. Oh, tudo tem um preço Clarissa e a vida está a pagar a sua divida perante ti.
Aproximou-se, sem jeito, sem saber o que proferir quando aqueles olhos azuis a examinassem. Finalmente. O que um simples toque pode causar. Os olhos azuis não examinaram: amaram o cabelo claro e cintilante à luz daqueles raios, a face branca e gelada, o nariz esguio e deslumbrante, os lábios carnudos e rosados de Clarissa. E olharam-se durante tanto tempo que quase o próprio tempo deixou de ter sentido. Por fim, sorriram ambos, parecia acordado entre os dois. Voltaram a suas vidas rotineiras e sem jeito. Sem jeito? Não. Nunca mais foram os mesmos. Leonardo deixou de querer voar. A terra tinha ganho cor e afinal, era bem melhor permanecer durante mais algum tempo, enquanto a morte não se encarregue de o levar. Clarissa sonhou, sonhou todas as noites em tons de azul. Oh, como a vida pode mudar, oh, como o mar é lindo, como o céu é deslumbrante, como os olhos daquele rapaz eram sensacionais.
Repetidamente e quando o coração permitia, voltavam ao lugar onde se tinha dado o despertar de duas vidas, o local do segundo nascimento. Um dia, irão acertar como que por magia os relógios e encontrar-se, finalmente, no mesmo local onde antes nem a magia conseguiria fazer o milagre que aconteceu.
[So far away…]
Texto e Fotografia: Bárbara


4 comentários:

Anónimo disse...

acho que devias fazer o dayzeroproject e por aqui, eu ia gostar :)

Bárbara disse...

tenho de pensar nisso (: nem era má ideia . muito obrigada pela dica ! (;

nuno monteiro disse...

agora tens todo o tempo do mundo para escrever, livre de testes e de fichas e livre de chatos que apenas te diziam vai estudar vai estudar vai estudar. Querendo, também podes ler. Bom trabalho!

Anónimo disse...

Um dos melhores textos que ja li