Lírico

A minha foto
Greenland
Toda eu sou alma. Todo eu sou frio, branca como a neve. Toda eu sou sonho, céu, nuvem. Toda eu sou girassol. Toda eu serei tua, se assim o entenderes.

29 de outubro de 2014

Rumo natural das coisas


“A única coisa que consigo captar, neste momento, é movimento. Luzes apressadas que atravessam a minha janela à velocidade da luz. A uma velocidade inferior, percorro toda a minha mente em busca de pensamentos credíveis. Quero acreditar que, no fundo, as coisas voltam ao normal. Ou, pelo menos, ao que eram antes. As dificuldades, os pesadelos, a vontade enorme de esconder o que quer que seja são apenas pequenas transparências que, feliz ou infelizmente, não consigo remover. Era suposto tudo ficar mais claro, brilhante, simples e cómodo. Ninguém me preveniu do contrário. Estava a contar com isso. De facto, a escuridão propaga-se a cada dia que passa. Um eclipse que veio para ficar, assim, imortal e enfadonho.

O comboio parou na estação e não partiu. Estagnei, tal qual como ele. O meio de transporte que usaria para sair daqui abateu o próprio rumo. O que será feito do meu caminho? Ainda não arranjei escapatória. Movimento-me em círculos. Mas como qualquer ciclo que se preze, volto ao início, acabada, mais vazia do que quando principiei. Nem me atrevo a falar de justiça quando habito um mundo governado por caos e miséria. Este vazio está a dar cabo de mim e vai englobar-me com um formato permanente, eventualmente. Falha-me a respiração, as crenças, o amor.

Gostava de poder dizer-te que tenho uma imensa disponibilidade para ir ver as estrelas ou as ondas do mar, o rio, a correria das gentes, um jardim pacato e minúsculo. É escusado. Não há nenhum sítio para onde fugir, nada que me possa resguardar a mim, a ti, a ambos. Parei de raciocinar. Só não consigo encontrar um ponto final para este pranto miudinho. Dói. A solidão, o vazio, a indiferença e ignorância, até o facto de não existirem palavras, nem descrição: dói. Dá vontade de fechar os olhos, permitir que o rumo natural das coisas suceda, por fim. De nada adianta contradizer o que não pode ser contrariado.”

Let it go. Do whatever just to stay alive.

Inácia Amarguras

25 de outubro de 2014

Caos da harmonia


Quando a lua deixa de aparecer no céu e o sol só intervém de vez em quando começamos a perguntar-nos sobre o porquê. Esquecemo-nos que talvez não haja razão. Esquecemo-nos que é suposto. Tentamos recordar a ideia de que tudo tem uma ordem. Não tem de ter, nem deve. Aleatoriamente, o tempo vai passando, vai-se preenchendo, moldando a nossa visão sobre o mundo, nós próprios, os outros. Parte de nós acredita, espera, alcança; parte de nós é vazio, obscuridade imensa, podridão. O segredo encontra-se num equilíbrio, um dos possivelmente impossíveis. Será?

Pode nem haver explicação, ser demasiado evidente ou terrivelmente agreste. Presumo que não seja claro e apenas posso imaginar. Este tipo de estabilidade, incerta, como uma dicotomia adquirida, nada tem que ver com qualquer fórmula, estatuto ou ditado vulgar. Antes fosse. E, quando a escuridão se apodera, fica noite. E, se a lua decidir não aparecer, passamos a ser inconscientes. Eterna ignorância de quem tem trilho e não sabe o rumo. Bastava uma chama, um olhar, ternura, estima, dedicação. Chegava um escasso bocado de esperança.

Autor: Bárbara Patrício
Foto de Nicholas Scarpinato

18 de outubro de 2014

A leve (e breve?) tontura



Estou tonto,
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
Ou de ambas as coisas.
O que sei é que estou tonto
E não sei bem se me devo levantar da cadeira
Ou como me levantar dela.
Fiquemos nisto: estou tonto.

Afinal
Que vida fiz eu da vida?
Nada.
Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada.
É por isso que estou tonto...

Agora
Todas as manhãs me levanto
Tonto...

Sim, verdadeiramente tonto...
Sem saber em mim e meu nome,
Sem saber onde estou,
Sem saber o que fui,
Sem saber nada.

Mas se isto é assim, é assim.
Deixo-me estar na cadeira,
Estou tonto.
Bem, estou tonto.
Fico sentado
E tonto,
Sim, tonto,
Tonto...
Tonto.



Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa
Pintura de Leonid Afremov