Lírico

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Greenland
Toda eu sou alma. Todo eu sou frio, branca como a neve. Toda eu sou sonho, céu, nuvem. Toda eu sou girassol. Toda eu serei tua, se assim o entenderes.

4 de julho de 2009

Perigosos segredos…

Tardes de Inverno, facas afiadas, geladas picadas turbulentas, lágrimas miudinhas cristalizando a dor…
Noémia desgastava um pouco mais os dedos, enlaçava num embaraçante jogo de linhas redondas bem preenchidas de espaços vazios. Sentada à luz da lareira, esperava e não se cansava de perder seu tempo em tão desgostoso trabalho. As pérolas cristalinas escorridas de seus fontanários espelhados eram lentamente absorvidas pelo pano carente envolto em tão poucas mãos.
Nunca foi senhora de inovações: rotineira e de relógio certeiro lavava, cozinhava e varria o chão sem vestígio de partícula. O movimento era pouco. De muito aquilo não tinha nada. Anoiteceu. O vento uivava ao desafio com a chuva chicoteando o vidro da janela de seu quarto. É aqui, neste momento só seu, onde é ela a rainha, que a sua memória lhe permite buscar os mais íntimos segredos. A sua pele era vidro e seu amante cristal. Seu marido era vento e minha água seu beiral.
António nunca soube o quanto ela gostara dele. Assim, o Sr. Anjos, de tão angelical ser denominado em terra, poucos louvores conseguiu no céu! Seu fígado perdera a função mesmo antes de se casar e a partir daí, deixou mesmo de funcionar, despachando as partículas exageradamente alcoólicas.
Comida feita, roupa lavada, amor esperando à porta… Que mais se poderia desejar? Uma bela garrafa do melhor vinho da região pois é claro! Amor? Fictício! Isso não era coisa para se demonstrar!
“ António Manuel Gomes dos Anjos aceita Noémia Maria Mendonça Gonçalves como sua esposa e promete ama-la e respeita-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença até que a morte vos separe? “
Promessas desfeitas num descortinado piscar de anos. Ambos se voltaram a enamorar: ela pelo vizinho, ele pelo seu eterno vinho. A desgraça ocupava aquele lar, a vergonha o fazia levitar. Um fim, uma derradeira despedida, uma leve carícia, para sempre um olhar fechado… Pouca sorte teve António, o vizinho Manuel não lhe pôde sorrir. Evaporaram ninguém sabe como, arderam nas profundezas do Inferno, não viram mais nada com aqueles olhos que a terra havia de comer… e comeu!
E ali, debruçada nos lençóis saudosos do toque de um homem, recostada na cama, se lembrava do triste destino que lhes tinha entregue: a eles e a ela! Até a mais superficial das mulheres esconde segredos mais profundos que oceanos, impossíveis de revelar… Também Noémia tinha os seus!
“ Oxalá estivessem a descansar junto do Senhor, oxalá Deus me perdoe este terrível pecado, esta horrenda mentira. ”
Peso de consciência, vidas aniquiladas no seu inverso. Um olhar diz tudo, um gesto resume a nada. Nem todos os segredos possuem a sua mísera ausência de mentira. Este tem apenas uma cumplicidade de almas perdidas, devastadas a puro e duro. Ela continua aqui, viva e de consciência basáltica, bem perto dos seus mais queridos. Eles encontram-se bem longe, nas mãos de um justiceiro. Os seus actos os resumiram a pó, que a terra havia de comer… e comeu!

5 comentários:

dRiKa disse...

simplesmente lindissimo*

A rapariga dos sapatos verdes disse...

Oh... Escreves tão bem! Adorei!! simplesmente ADOREI!

=)

sílvia c coelho disse...

:)
Obrigada

Anónimo disse...

Texto sentido, durido e bem estipulado.. A dor intensa, mas consegues assim supera-lá. Afinal, não é essa a missão do ser humano? Ser feliz? "Don't worry, be hapy".

Anónimo disse...

Texto doloroso,intenso, sofrido. Mas forte tu és, pois se as palavras escritas, duras são, então a sua dona também o é.